O TRATAMENTO DISPENSADO AOS CONFLITOS E À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A PRESERVAÇÃO DAS RELAÇÕES FAMILIARES
É fundamental dispensarmos um olhar atento à necessidade de preservação das relações familiares, naturalmente conflituosas, e ao devido tratamento para estes conflitos, sem descuidarmos da utilização dos instrumentos adequados que visam coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A inevitável judicialização destas situações de violência intrafamiliar, deve servir como uma oportunidade de intervenção dos diversos atores comprometidos com o distencionamento e a pacificação da sociedade.
Neste contexto, a Lei Maria da Penha representou um grande avanço, como um instrumento que permitiu revelar-se uma realidade que há muito afrontava a pretensa igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, que é prevista em nossa Constituição.
Inegavelmente, os mecanismos instituidos por esta lei criaram as condições para que inúmeras denúncias surgissem, e as medidas protetivas aplicadas pudessem equilibrar e estabelecer uma nova correlação de forças dentro do ambiente doméstico, pautado pelo respeito mútuo.
Vale dizer que, até então, as relações caracterizadas por brutalidade, constrangimento, abuso, proibição, desrespeito, discriminação, imposição, invasão, ofensa, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial viam-se escondidas, subjugando a qualidade de vida, a saúde, a segurança e o desenvolvimento pessoal e social das mulheres vítimas de violência doméstica.
No entanto, é preciso ter-se em conta que devido à falta de estrutura do Estado, que mal consegue manter seu aparato policial, o processo de implantação de políticas capazes de coibir a violência e de prestar a devida assistência à família, vem deixando a desejar em vários aspectos.
Como consequência dessa desassistência, normalmente o Estado acaba sendo acionado para intervir quando a situação tornou-se, ou está na iminência de ficar insustentável, e quando a cultura de violência que ainda prepondera já produziu estragos irreparáveis.
Em muitos casos, o que se observa é a repetição de um modelo familiar parental violento, presente na história de origem das pessoas envolvidas, em geral vítimas de maus-tratos ou abusos na infância, num ciclo da violência no ambiente doméstico que muitas vezes é passado de pai para filho.
O fato é que vivemos ainda um período turbulento de transição de uma sociedade que herdou uma cultura de tolerância com a violência intrafamiliar enquanto elemento conservador de valores patriarcais, para uma nova realidade estrutural das relações parentais, ainda não completamente assimiladas, o que por vezes vem gerando e/ou ampliando o tensionamento dos conflitos familiares.
Em que pese à relevância do direito constitucionalmente assegurado de acesso ao Poder Judiciário, a judicialização nem sempre se mostra como a maneira mais saudável de tratamento de conflitos familiares.
Em muitos casos, a falta de estrutura do Estado para oferecer adequada assistência à família, despreparo de alguns agentes públicos, e até mesmo de operadores do direito, fez com que a Lei Maria da Penha passasse a representar, não uma solução, ainda que paliativa, mas um fator de tensionamento.
Neste contexto os agentes públicos ligados à segurança pública, Ministério Público, magistrados, advogados, assistentes sociais, profissionais da saúde, educadores, e a sociedade em geral, não podem omitir-se, nem diante das situações de violência, nem do eventual mau uso das medidas protetivas, por exemplo, como forma de alienação parental.
Na medida em que a Constituição determina a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, a Lei Maria da Penha surgiu efetivamente como um instituto que redimensiona as instâncias de tratamento das demandas decorrentes de violência doméstica, ofertando um conjunto de instrumentos de intervenção imediata.
Não há como não reconhecer seus méritos, mas subsiste o problema do tratamento adequado dos conflitos familiares, para os quais existem formas alternativas de solução, como por exemplo, a mediação, que se mostra capaz de humanizar e promover a pacificação de conflitos.
Garantir o acesso à justiça e à segurança é garantir o direito à Paz, razão pela qual não devemos medir esforços no sentido de assegurar que todas as ferramentas disponíveis sejam utilizadas de forma a nos conduzir à pacificação dos conflitos familiares, e em boa medida, à pacificação da nossa sociedade.
(Baseado no artigo "A Lei Maria da Penha e o Tensionamento dos Conflitos Familiares" de Fabiana Barcellos Gomes in PSICOLOGIA FORENSE. Ed. Imprensa Livre. 2017. p. 99-110)