A Constituição Cidadã de 1988, alicerce sobre o qual refundamos nossa nação, adotou algumas palavras-chave que devem ser sempre destacadas.
Isto porque, através delas, a nossa Carta Magna nos indica alguns roteiros que passam necessariamente pelas largas avenidas da igualdade, da dignidade, da harmonia e da liberdade.
Por outro lado, a nossa Lei Maior, ao mesmo tempo em que nos assegurou direitos, também indica que a democracia pressupõe que tais vias sejam sempre de mão-dupla.
Não por outra razão, logo após sua promulgação foi editada a Lei 7.716 de 1989, na qual foram tipificados os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor.
Em 1997, essa mesma lei foi alterada para, enfim, criminalizar também a discriminação em razão da etnia, da religião ou da procedência nacional.
Mais recentemente, em uma decisão bastante polêmica, o STF julgou que a mesma lei pode agora ser aplicada em crimes de preconceito e discriminação praticados em decorrencia de homofobia ou transfobia.
O fato é que a consolidação da cidadania em uma sociedade plural e dinâmica exige de todos o respeito à diversidade.
Desconsiderar esta diversidade é como transitar sem qualquer cautela por uma avenida com várias pistas e cruzamentos como se ela fosse uma "freeway" de mão única.
Além disso é preciso reconhecermos que nem todos adquiriram o direito de transitar pelas vias da cidadania ao mesmo tempo, o que facilmente se percebe a partir de um rápido olhar sobre nossa história.
Basta ver que foi há pouco mais de 130 anos que foi abolida a escravatura de negros no Brasil, sem que nenhuma iniciativa de inclusão social fosse efetivamente adotada, levando a um processo de marginalização extremo.
Também é fato que, mesmo após a proclamação da República, mulheres, analfabetos, mendigos, soldados, indígenas e integrantes do clero ainda estavam impedidos de votar.
Isto evidencia que somos todos descendentes de uma cultura discriminatória, notadamente machista e racista.
Vale mencionar, por exemplo, que as mulheres votaram pela primeira vez para presidente somente em 1945.
De qualquer modo, mesmo o direito universal ao voto não é sinônimo de pleno exercício da cidadania, o que só se notabilizaria quando tivéssemos também a universalização de um acesso igualitário às oportunidades.
Na virada deste século, novas leis surgiram para tentar reduzir desigualdades e promover acessibilidade e inclusão.
Estatutos como o das crianças e adolescentes, dos idosos, da pessoa com deficiência e o da igualdade racial, entre outros, compõem um amplo arcabouço legal, que busca equilibrar as disparidades sociais.
Infelizmente, porém, ainda estamos longe disso, e estas distâncias ficam ainda maiores quando algumas pessoas ingressam na contramão da lei, abalroando frontalmente a diversidade.
Neste contexto, o racismo é uma atitude muito presente ainda, mas não anda só.
Ele parte de um pressuposto de discriminação que ocorre quando há uma percepção distorcida das diferenças, que descamba para uma valoração desigual do direito.
É preciso compreender que, falar em igualdade, não é simplesmente tratar a todos como iguais, mas sim promover verdadeiramente acessibilidade e inclusão de forma equilibrada, proporcional e sustentável.
Sendo assim, desconectar a percepção da realidade atual da compreensão de outros aspectos históricos, sociais, econômicos e culturais, é o que gera estas graves distorções, e muitas vezes leva inclusive à negação do racismo estrutural da nossa sociedade.
Para que cada um de nós, do seu lugar de fala e observação, homens ou mulheres, negros ou brancos, ou pessoas de diferentes gêneros, etnias, crenças, culturas ou classes sociais, possamos transitar com paz e segurança, precisamos olhar para frente.
Mas, é fundamental termos atenção às regras e respeitar o fluxo de uma sociedade plural, observando as vias preferenciais, e de vez em quando olhando no retrovisor, para não incorrer em infrações graves e danosas.
Por outro lado, racismo no Brasil não deve ser entendido como fenômeno isolado, patológico, partidário ou ideológico.
Trata-se de um comportamento, por vezes inconsciente e/ou inconsequente, que está arraigado na desconstrução de uma observação crítica das diferenças que existem entre pessoas, suas circunstâncias e suas potencialidades.
É papel de todos e do Estado, trabalhar para estruturar em nossa sociedade uma melhor compreensão acerca dessa diversidade, coibir a violação de direitos fundamentais e a interrupção deste fluxo civilizatório.
Ao longo deste caminho, portanto, temos que ser firmes com quem deliberadamente bate de frente com o direito à dignidade e à vida de outro ser humano, de forma a construirmos uma convivência verdadeiramente harmônica.
Nessa estrada, é o racismo que está na contramão.