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MULTIPARENTALIDADE E PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Historicamente, a consanguinidade definiu a construção familiar, desconhecendo das espécies inéditas dos outros arranjos familiares. No entanto, desde 2003 o nosso Código Civil já prevê a possibilidade de o parentesco resultar de outra origem que não a biológica.

Desta forma, a legislação brasileira prevê o reconhecimento dos mesmos direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação de casamento ou por adoção, proibindo toda designação discriminatória relativa à filiação.

Neste sentido, o parentesco socioafetivo interpreta-se como um vínculo alheio à questão genética, gerado pela convivência geradora de solidariedade e carinho recíprocos, que faz com que os indivíduos se tratem como parentes.

É o caso, por exemplo, dos sentimentos que emergem da familiaridade, na qual um indivíduo ama alguém como filho ainda que não tenha contribuído com sua carga genética.

Nesta mesma linha, a doutrina e jurisprudência reconhecem a paternidade e a maternidade socioafetiva, contemplando assim os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana.

Hoje, por exemplo, já é facultado o reconhecimento voluntário da paternidade e/ou maternidade socioafetiva.

Mais recentemente, em 2016, o STF fixou que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante aquele baseado na origem biológica, com todos os seus efeitos jurídicos próprios.

No mesmo julgado, assentou-se que “A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser.”

No entanto, a nossa Suprema Corte lançou seu olhar também para outros arranjos familiares que merecem proteção de forma concomitante, tanto no que se refere aos vínculos parentais de origem biológica, quanto afetiva.

São aqueles conhecidos como vínculos de “pluriparentalidade” ou “multiparentalidade”.

Numa perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, especialmente a partir deste julgado, o STF consagrou que os vínculos de filiação construídos pela relação afetiva, não impõe que se decida entre estes e aqueles originados da ascendência biológica, isto quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento de ambos.

Este entendimento atende também ao princípio da paternidade responsável, o qual insculpido no parágrafo sexto, do artigo 226, da Constituição Federal.

Neste cenário jurídico, a multiparentalidade manifesta-se na concomitância de parentalidade biológica e afetiva, havendo assim a possibilidade de um indivíduo, inclusive juridicamente, ter mais de uma mãe e/ou mais de um pai, com reflexos inclusive nas questões relacionadas ao poder familiar.

Cabe destacar que existe no Senado Federal desde 2013 um projeto denominado “Estatuto das Famílias”, elaborado a partir de uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), e que busca dar efetiva proteção as famílias, em qualquer de suas modalidades e às pessoas que a integram.

Este projeto prevê, entre outras coisas, que o parentesco resulta da consanguinidade, da socioafetividade e da afinidade, e que os filhos, independentemente de sua origem biológica ou socioafetiva, têm os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações ou práticas discriminatórias.

De todo modo, em 2019 a Corregedoria Nacional de Justiça de expediu uma atualização dos atos normativos para os serviços notariais e de registro, orientando, entre outras coisas, a forma como pode ser demonstrada a afetividade para o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva, entre as quais:

- O apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; 

- A inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência; 

- O registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; 

- O vínculo de conjugalidade - casamento ou união estável - com o ascendente biológico; 

- A inscrição como dependente do requerente em entidades associativas; 

- Fotografias em celebrações relevantes; 

- Declaração de testemunhas com firma reconhecida.

Além disso, a paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente.

O fato é que através de fenômenos sociais, a cada dia mais vem se percebendo a ressignificação das famílias, de forma a colocar o afeto como valor supremo das relações conjugais e de parentalidade.



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