O ato constitutivo de uma sociedade de pessoas resulta normalmente de uma assembleia que aprova um estatuto, onde são definidos objetivos sociais, direitos e obrigações dos membros integrantes, e as instâncias de poder.
Nele há um conjunto de normas que servem para balizar as relações internas e externas, atribuindo responsabilidades, e outras regras básicas de convivência e manutenção da sustentabilidade deste pacto.
Em uma Nação como a nossa, a Constituição é este Estatuto soberano, no qual o Estado é o ente representativo dos poderes que emanam da vontade de todos.
Estes poderes subdividem-se em diversas instâncias e estruturas, com diferentes papéis complementares, integrados, harmônicos e interdependentes.
Um destes poderes delegados que mais impacta a vida das pessoas é o chamado “poder de polícia”, que se traduz na força monopolista do Estado frente aos indivíduos e seus naturais conflitos de interesses.
É com base neste poder que a jurisdição deve nos submeter a todos, razão pela qual precisa ser exercida com o máximo de isenção, imparcialidade, impessoalidade, probidade e eficiência.
Mas não podemos esquecer que magistrados, porquanto seres humanos, têm a mesma origem dos políticos, dos empresários, e dos cidadãos em geral.
Como membros integrantes da sociedade, eles têm os mesmos valores e aspirações e possivelmente os mesmos desvios dos demais, sendo, portanto, tão falíveis ou corruptíveis quanto qualquer outro.
Além disso, há a tendência natural das pessoas de criarem vínculos de cumplicidade com aqueles com quem compartilham interesses e temores.
E é especialmente no parlamento que esta representação da sociedade se materializa de forma mais clara.
Assim, vemos nossos mandatários sendo cooptados por um sistema que centrifuga peculiaridades e que, em boa medida, homogeiniza comportamentos.
Em todos estes ambientes vemos emergir o corporativismo, como um mecanismo de autoproteção e de preservação do “status quo” em favor principalmente daqueles que conquistaram estes invejáveis espaços de poder.
Todos os poderes da República originalmente pertencem ao conjunto da sociedade, sendo delegados a quem supostamente se apresenta para agir em proteção ao interesse comum.
Isto é fortemente simbolizado no Executivo, eleito pelo voto direto e personalista, mas deveria valer para todos os poderes.
O que temos visto, no entanto, é que estes mesmos poderes passaram a ser instrumento utilizado em favor de interesses muitas vezes escusos de seus circunstanciais ocupantes.
Ainda assim, há que se destacar que a eventual substituição de um “Estado Político” por um “Estado Policial”, mesmo que para alguns pareça uma saída adequada, na verdade é um caminho extremamente perigoso, pois corrompe os valores democráticos.
Num momento em que nos vemos ameaçados por tentativas de coação entre poderes da república, desarmonia e arroubos autoritários, as ameaças de diferentes formas de totalitarismo tornam-se reais.
E já vimos este filme antes, especialmente quando, sob o pretexto de proteger a liberdade, fomos no passado levados à ditaduras, com a perda da mesma liberdade que supostamente pretendia-se proteger.
É mais que sintomático que nos últimos anos vivenciamos graves crises institucionais decorrentes da ingovernabilidade gestada no parlamento, e da criminalização da política pelo judiciário.
Soma-se a isso uma imprensa desacreditada por grande parte da sociedade, e o empoderamento de propagadores de fakenews.
Assim chegamos no ponto onde estamos, tendo hoje um país sem rumo, com alguns excêntricos em postos chaves da república, o legislativo totalmente fragmentado, e parte do judiciário refém de suas próprias incongruências.
O que as inúmeras teorias conspiratórias que transitam pelas conversas têm em comum é a lógica utilizada pelos supostos conspiradores: desunir para conquistar.
Seja fenomenológico ou orquestrado, o fato é que está funcionando, pois a nossa sociedade se vê dividida até mesmo no enfrentamento a um inimigo comum a toda humanidade: o novo coronavírus.
Então, quando estamos caminhando rumo a autodestruição, por mais anacrônico que isso pareça, retroceder passa a ser a única forma de avançar.
Significa dizer que precisamos resgatar a nossa Constituição, hoje totalmente vilipendiada, para sobrevivermos como cidadãos livres e, principalmente, como nação.
Para tal, é preciso voltarmos ao princípio, ou aos princípios consagrados na refundação promovida pela Constituição de 1988.
É este o único meio para atingirmos os fins esculpidos no seu artigo 3°:
I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II- garantir o desenvolvimento nacional;
III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Não é preciso nem admissível impor opiniões ou ideologias, só precisamos de uma boa dose de bom senso e de Democracia.
Fabiana Barcellos Gomes
(Advogada com Formação em Psicologia Forense, especialista em Direito Penal, Direito das Famílias e Direito do Trabalho).